Para trazer luz ao passado, mostrar o presente e projetar o futuro, o Diário entrou no prédio onde funcionava a boate.
Na entrada, estrelas de papel, coladas recentemente por crianças em uma intervenção da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), trazem mensagens de fé, amor e esperança que afagam o peito de quem sente a dor causada pela tragédia.
Mas, dentro da Kiss, já não existe afago. Apesar da ação do tempo que prejudicou principalmente o assoalho de madeira da pista de dança, ainda é possível relembrar espaços tão citados pelos sobreviventes como a pista, os caixas, o bar, a área VIP, os banheiros e o palco, onde tudo começou.
No espaço onde era o camarim, assinaturas de artistas e bandas que já passaram pela Kiss se destacam. Em anos anteriores, naquele mesmo palco, se apresentaram Armandinho, Cachorro Grande, Acústicos e Valvulados, Esteban Tavares, entre tantos outros.
As mesas, algumas próximas ao palco, preservam um papel colado com os nomes de pessoas que tinham lista naquela noite. O sushiman Rafael Gusmão, 31 anos, é sobrevivente da tragédia e o nome na mesa é um detalhe que segue latente na memória dele.
No caminho até o palco, os espelhos, onde inúmeras pessoas que iam à Kiss se divertir tiravam fotos sorridentes, parecem ter sido os únicos que resistiram ao tempo. No palco, um resquício da espuma usada como isolamento acústico relembra onde e como o incêndio teve início. Já no banheiro masculino, um buraco bem próximo ao teto remonta os esforços de quem já tinha saído da boate e tentava quebrar a parede na esperança de entrar ar puro ou conseguir salvar alguém.
Do outro lado, na área VIP, o adesivo escrito “extintor” evoca o relato de sobreviventes que disseram que, naquela madrugada, uma das únicas alternativas existentes para apagar o fogo não funcionou. Além disso, a cada passo no escuro, os guarda-corpos usados para separar um ambiente ou outro, fazem pensar sobre a dificuldade e o desespero de não conseguir se locomover dentro da boate com centenas de outras pessoas.
Apesar do imenso vazio, muito diferente de quando funcionava plenamente, os destroços do incêndio despertam a lembrança de tudo o que se sabe e o que se sente sobre a tragédia da boate Kiss.
E como era a Kiss antes da tragédia?
Na época do incêndio, o local estava recém reformado. Obras foram necessárias para atualizar a estrutura do local a partir de normas técnicas. Além de renovar a pintura da boate, os proprietários também providenciaram o rebaixamento do teto, segundo o eletrotécnico Édio Nabinger, que trabalhou na execução de parte dos trabalhos contra incêndio.
Ainda assim, dois alvarás, o sanitário e o Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI), estavam vencidos quando a boate pegou fogo. Conforme peritos da Secretaria de Segurança Pública, as reformas internas foram realizadas sem embasamento na lei. E a espuma, que forrava o teto como forma de isolamento acústico, além de não ser recomendada para a finalidade, era altamente inflamável. Naquela noite, quando a espuma pegou fogo, ocorreu a liberação de cianeto, gás tóxico que asfixiou dezenas de jovens.
Mesmo sem data, Memorial da boate Kiss deve sair do papel
Hoje, mesmo que a fachada já tenha abrigado inúmeras manifestações e homenagens, a Kiss ainda é a mesma de 27 de janeiro de 2013: destroçada e cheia de lembranças dolorosas. O prédio foi desapropriado em 2017, durante a primeira gestão do prefeito Jorge Pozzobom, e um ano depois, com a realização de um concurso entre o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS) e a AVTSM, foi escolhido o projeto do memorial em homenagem às vítimas do incêndio.
Em 2018, a construção foi orçada em R$ 2,5 milhões. Mas, com o passar dos anos, o valor aumentou e, agora, serão necessários R$ 4 milhões para que os destroços de uma tragédia sejam transformados em um local de preservação da memória e da luta por justiça. Por enquanto, ainda não há uma data para que isso aconteça.
Segundo Gabriel Rovadoschi, 28 anos, presidente da AVTSM e sobrevivente da tragédia, a expectativa era de que o projeto saísse do papel após a conclusão do processo. No entanto, com a anulação do julgamento, a ideia precisou ser repensada.
– Temos conversado desde o ano passado sobre a construção do memorial e queremos dar andamento ao projeto apesar da anulação. Primeiro porque acreditamos na reversão (da anulação). Além disso, a construção seria um ato forte de denúncia. Será o memorial da justiça ou da impunidade? É um lugar de memória para ser vivido, preservado, para que a gente possa viver nossa luta e para que Santa Maria não esqueça – ressalta Gabriel.
Ainda, na tarde desta terça (24), em reunião com o governador do Estado, o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB) e vice Rodrigo Decimo (União Brasil), apresentaram a Eduardo Leite (PSDB) o projeto do memorial.
– Levamos o projeto para o governador conhecer. Ele vai dar apoio integral ao projeto e vai ver como nos ajudar a buscar recursos – garantiu Pozzobom.